sábado, 2 de outubro de 2010

Drogas e toxicodependência

Esta semana, graças à minha escolha de “drogas e toxicodependência” como optativa para o início do ano tive a oportunidade de assistir a alguns dos momentos mais marcantes da minha “prática clínica” (será que já posso dizer isto?) até ao momento.
Confesso que quando soube quem era o professor responsável pela cadeira vi a minha vida a andar para trás. Afinal, era o senhor responsável pela pior cadeira que tive até ao momento. Teórica até dizer chega e com uma capacidade impressionante de me fazer adormecer ou sair ao fim dos primeiros 10 minutos de aula.
A aula estava marcada para a sala de psicologia e eu já estava preparada para estar cinco horas de seguida em luta constante por manter os olhos abertos. Mas quando chegámos à sala o Professor decidiu que íamos, em vez de ter uma aula teórica, ter uma aula prática. Deixou-nos assistir a terapia de grupo de toxicodependentes HIV positivos.
A princípio ficámos um pouco de pé atrás quanto à iniciativa. Estávamos todos contentes por um lado porque afinal íamos ter qualquer coisa prática, mas por outro ficámos receosos pelo que nos esperava.
Entrámos numa sala com cadeiras dispostas em círculo e sentámo-nos. Lá dentro já lá estavam algumas pessoas. Outras foram chegando durante a sessão. Prometemos não interromper e perguntámos aos presentes se se importavam com a nossa presença. Alguns não se importavam de todo, outros lá torciam o nariz, mas acabavam por dizer “eles têm de aprender não é Professor?” e pronto, lá ficámos.
A sessão começou com uma senhora cigana que era nova no grupo.
Professor: Então “senhora cigana”, é a sua primeira vez neste grupo. Dantes estava no grupo dos toxicodependentes HIV negativos mas as suas análises agora vieram positivas. Como é que se sente em relação a isso?
Senhora cigana: Ah, já estava à espera.
(Pausa. O Professor esperou que ela acrescentassem mais alguma coisa. Não acrescentou. Ninguém disse mais nada.)
Professor: Mas estava à espera porquê?
Senhora cigana: Porque o meu marido também tem.
Professor: Então mas não usava preservativo quando tinha relações com o seu marido?
Senhora cigana: Não, não doutor. Também ele já tem aquilo há tantos anos e eu nunca apanhei. Algum dia havia de ser.
Professor: Então mas porque é que não usava preservativos.
Senhora cigana: Porque acabaram. O nosso médico morreu e nós deixámos de ter preservativos. Já há uns tempos.
Professor: E a sua filha?
Senhora cigana: Está boa.
Professor: E ela não apanhou o vírus?
Senhora cigana: Não, não, ela não tem nada.
Professor: Então e agora o que está a pensar em fazer?
A Senhora cigana encolheu os ombros.
Professor: Sabe o que é que o vírus faz não sabe?
Senhora cigana: Sei, sei. Se não comer bem fico com as defesas fracas. Mas eu tenho comido.
Professor: O resto do grupo concorda com a “senhora cigana”? É isto que o vírus faz?
(Novo silêncio. Alguns olham para o chão, outros abanam a cabeça, outros simplesmente é como se não estivessem lá).
Professor: E a medicação? Já começou a fazer?
Senhora cigana: Ainda não. O meu marido também não tem feito e só agora é que está a começar a ter um ou outro problema, por isso…
Menina das calças rasgadas: Até ao dia… Nós vamos morrer todos.
Professor: É isso que achas “menina das calças rasgadas”?
A menina das calças rasgadas encolheu os ombros e assentiu.
Professor: “Senhora da t-shirt cinzenta”, há quantos anos é HIV+?
Senhora da t-shirt cinzenta: Tenho o diagnóstico já há mais de 25 anos.
Professor: E como é que se sente?
Senhora da t-shirt cinzenta: Bem. Faço a medicação e estou bem. Só o fígado é que me vai dando uns problemas. No outro dia fui fazer uma ecografia…
Menina das calças rasgadas: Estás grávida?
Senhora da t-shirt cinzenta, sorrindo: Não… já não tenho idade para isso… eu até gostava mas não tenho idade. Agora já não. A ecografia era para ver o fígado.
Menina das calças rasgadas: Ah… era giro se estivesses grávida…
(Novo silêncio. O Professor muda de interlocutor)
Professor: Então “rapaz giro” e como vão as coisas consigo?
Rapaz giro: Vão andando. Não tenho consumido. Já há uns dois meses. Isto agora está melhor. Arranjei um emprego. O chefe deixa-me vir às reuniões aqui. Expliquei-lhe tudo, é um tipo já assim velho, mas porreiro. Ele disse para eu dizer aos colegas que tenho um problema nas costas e que por isso é que tenho de sair.
Professor: E os seus filhos?
Rapaz giro: Lá andam. O mais novo nem me reconhece como pai. Às vezes nem um beijinho me quer dar. Também é pequenito, só tem 3 anos, e ele não me vê muitas vezes. Eu e a minha ex-mulher separámo-nos quando ele ainda era recém-nascido. Ela não aguentava mais coitada. Também não sei como aguentou tanto. O mais velho está bom. É muita esperto o puto, parece que já nasceu ensinado. É é um puto muito irrequieto. Na escola acho que anda sempre à porrada. Também é da idade, os 6 anos… A mais velha é que agora está muito mais próxima de mim. Tem 17, óptima aluna, no próximo ano vai para a universidade e até quer fazer um ERASMUS ou lá como raio essa coisa se chama. É uma boa miúda. E não me pede nada. Às vezes a mãe pedia-me dinheiro para ela e a miúda dava-mo outra vez pelas costas. Agora anda é com a mania dos piercings, já viu doutor? 3 Piercings? E no outro dia chegou a casa e disse: Pai, vou fazer uma tatuagem. É que nem perguntou. Disse só que ia fazer. E eu não posso dizer-lhe nada. Não tenho moral. E ainda por cima ela é boa aluna.
Professor: Está com em manter a posição firme de um pai não é? Como consumia, consume, heroína, acha que não tem moral para lhe dizer nada, não é?
Rapaz giro: É isso mesmo doutor. E a miúda nem bebe, nem fuma…
Senhora da T-Shirt cinzenta: Também é só um piercing.
Rapaz giro: 3 piercings!
Senhora da T-Shirt cinzenta: Sim, pois, mas isso não é nada.
Professor: E tem-se aproximado mais dos seus filhos pequenos?
Rapaz giro: Sim, tenho. Até porque a mãe deles agora quer voltar para mim. Eu ‘tou com um bocado de medo. É que já sabe como eu sou. Um eterno insatisfeito. Eu ‘tou com ela e umas horas depois já quero é ‘tar com outras. É o mesmo que com a droga. Quero é prazer imediato. Se não há mulheres há drogas. E eu não a quero magoar outra vez, que ela já sofreu tanto comigo… foi a droga, foram as outras mulheres… Eu quero levar as coisas com calma, agora até tenho um emprego novo... Saímos uma ou outra vez com os miúdos ao fim-de-semana, mas nada de muito sério.
Professor: Acha que se voltar para ela vai voltar a consumir?
Rapaz giro: Se a coisa dá para o torto de certeza doutor. É que eu quero sempre mais. Enquanto estive com ela tive mais umas 50 mulheres. E ela mesmo assim quer voltar.
Professor: E o “rapaz giro” gostava de voltar? Quer voltar?
Rapaz giro: Não sei doutor. E há outra coisa. É que ela depois de nos termos separado já teve um namorado. Dois meses doutor. E eu já sei que vou estar na cama com ela e a pensar que ela esteve com outro e aquilo não vai correr nada bem.
Senhora da T-Shirt cinzenta: Isso é machismo! Então tu tiveste não sei quantas mulheres ainda quando estavas com ela e ela não pode ter tido um namorado dois mesitos?
Rapaz giro: Eu sei que é machismo e que está mal. Mas não consigo. Percebe não percebe doutor?

E eu podia ficar aqui horas a contar-vos tudo com mais pormenor. Podia falar-vos do senhor-com-cara-de-criança-e-ideias-absurdas, do senhor-de-fato-e-gravata, do casal que faz a recuperação juntos. Podia, mas não vou falar porque já me alonguei bastante.
Depois disto assisti ainda às consultas individuais, tive a oportunidade de falar a sós com alguns dos doentes e adorei. Podia falar-vos do casal homossexual, do senhor-que-sempre-fez-o-que-queria-e-bem-lhe-apetecia-mas-agora-tem-uma-filha-que-também-quer-fazer-algumas-coisas-e-está-aterrorizado, do senhor-que-toma-1mg-de-medicação-por-dia-mesmo-sabendo-que-isso-já-não-tem-efeito-mas-que-tem-medo-de-voltar-à-heroína-se-parar. Podia. Mas já não vou falar porque já estou farta de escrever e não sei bem quem é que chegará sequer a esta parte do texto.
Bem dita a hora em que escolhi esta optativa.
E além de tudo isto portámo-nos tão bem durante as “aulas” que nem temos de fazer trabalhos em casa. Melhor optativa de sempre.

4 comentários:

Incógnita disse...

Só para dizer que li até ao fim!

Sara disse...

Também li até ao fim :) Gostei muito

Jo disse...

:)

Huguinho disse...

Eu LI até ao fim! =D
E gostei muito, deve ser daquelas experiências que marcam mesmo.
beijinho grande joaninha!