quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Da Pediatria

Numa situação normal teria ficado chateada por hoje o meu único doente ser aquilo a que chamam um "caso social". Basicamente isto quer dizer que da parte clínica já podia ter alta, mas por uma questão social não pode. O D. ainda não tem um mês de vida e está lá abandonado naquele que agora nas próximas semanas é o meu hospital. E não é o único. Há lá mais bebés na mesma situação, mas para mim o D. é especial. É o "meu bebé do hospital" e por isso quando tenho tempo e quando posso sou eu que o vejo. E quando não me calha a mim ficar com ele arranjo sempre um bocadinho para ir lá visitá-lo. Dar-lhe colo, ajudar no banho ou dar o biberon. Parte-me o coração vê-lo lá sozinho, tão pequenino. Ainda não tinha nascido e já lhe tinham feito tanto mal...
Mas não foi para falar do D. que cá vim hoje.
Tinha acabado de ver o D. e estava com aquele sorriso estampado na cara com que fico sempre que o vejo. Estava a caminho da sala dos médicos quando lá ao fundo oiço uma voz infantil.
- Olha, podes-me ajudar?
Olhei para o fundo do corredor e vi um miúdo à porta da casa de banho a sorrir. Não o conhecia. Passou-me pela cabeça que pudesse ser o miúdo de que me tinham falado ontem mas não correspondia à imagem que tinha na minha cabeça. Imaginava-o um miúdo mais pequeno, com um ar tímido. Mas este não era tímido. Dirigi-me a ele é disse-lhe que claro que o ajudava no que pudesse.
F: olha, onde é que ponho a minha roupa para tomar banho?
Jo: hum... Acho que podes deixar em cima do lavatório...
F: e ponho a roupa para lavar no cesto?
Jo: sim, é melhor...
F: onde está o sabonete??
Jo: hum... Nao há no chuveiro? Em ultimo caso podes usar o de lavar as mãos, também serve. Não te conheço...
F: pois, eu também nao te conheço - estendeu-me a mão - sou novo aqui no colégio.
Jo: quantos anos tens?
F: tenho 11.
E então eu soube que era ele. Que era este o rapaz de que me tinham falado. Este rapaz despachado, sorridente e confiante. Nada como o tinha imaginado. E então, assim que me apercebi disto senti que não sabia se estava preparada para lidar com ele é com toda a situação.
Jo: vá, toma lá o teu banho, pendura a toalha na porta e depois veste-te aqui na casa de banho.
Mas ainda não tinha acabado a frase quando ele me virou as costas e tirou a camisola. E então eu vi. Cicatrizes incontáveis nas costas, como se tivessem sido chicotadas. Umas maiores, outras mais pequenas, umas mais antigas, outras mais recentes... Tentei não olhar, mas não conseguia. E ele continuava a falar comigo, de costas voltadas, mas eu já não o ouvia.
Como é que é possível que estas coisas aconteçam? Que raio de mundo é este onde é "normal" abandonar crianças nos hospitais, ou bater-lhes, ou partir-lhes braços ou costelas?? Ou ter um filho com doenças graves e não saber quais os medicamentos que a criança toma?? Ou ter um filho adolescente que se automutila e não se dá conta???
O que é que se está a passar???

terça-feira, 12 de novembro de 2013

1/6

E o primeiro estágio passou a voar! Contra todas as minhas expectativas acabou por ser um dos melhores estágios que tive até hoje. Aprendi imenso, trabalhei mais do que muito, passei vários dias com olheiras até ao chão, mas valeu a pena.
Este estágio mudou em muito a visão com que tinha ficado da Medicina Geral e Familiar no ano passado. Aprendi não só de medicina como também aprendi muito sobre o funcionamento do SNS, das unidades de saúde familiar e toda a parte mais burocrática que faz com que as coisas até funcionem.
Aprendi muito sobre trabalho em equipa, gestão de recursos humanos e gestão de conflitos. Cumpri os objectivos a que me tinha proposto para este estágio e ultrapassei muitos deles. Conheci muitas pessoas cinco estrelas, sem as quais este estágio não teria valido metade do que valeu, que me ajudaram sempre que precisei, e recebi elogios suficientes para me encherem o ego para o resto do ano.
Espero que os próximos sejam igualmente gratificantes (não vai ser fácil, mas tentar não custa).
Agora começou a pediatria, desta vez em hospital. Vamos lá ver o que me está reservado. Pelo menos uma coisa é certa: o horário é bem mais simpático.